sexta-feira, 11 de março de 2011

Feiura

A feiúra das duas complementava-se.  A mãe, sexagenária, mas muito mal tratada aparentava uns oitenta, naquela época em que aparentar oitenta, era oitenta mesmo! Magra, ossuda e incrivelmente descabelada.  Por mais que prendesse os cabelos brancos, encardidos e ondulados, a maioria teimava em ficar em riste como antenas. Era chamada na rua de petequinha véia: magra, pequena e perdendo as penas! No mais, tivera sorte na vida, casou-se bem com alta patente do exército, mas quis o destino que enviuvasse cedo. Apesar da boa pensão nunca mais arranjou alguém. Da união nasceu uma única filha, tão feia e desgrenhada como a mãe. Herdara não sei de quem a burrice, por isso não progrediu na vida, mal conseguiu sair do ginásio. A mãe zelosa da cria preocupava-se com seu futuro. Casar a moça ia ser difícil, nem a generosa pensão do falecido pai iria ajudar. Mas um dia, não é que apareceu um?   Jovem, funcionário público, nem feio nem bonito. Pior, sem graça.  Casaram-se como de praxe com festa, comilança “alavonté”:  arroz com galinha, feijão empamonado, maionese, guaraná e cerveja; sob as velhas mangueiras do feio quintal da casa da mãe.
Tiveram dois filhos, que nessa época não dava pra preconizar se seriam feios como seus parentes, eram crianças. Com os passar dos anos a feiura pregou em todos: mãe e filha com cabelos desgrenhados, vestidos gastos, peitos caídos, gordura dobrando sobre a barriga, bunda caída, canelas marcadas e pezão esburrachado. O antes jovem marido, agora aposentado, envelheceu a olhos vistos, engordou e acomodou-se  num canto escuro da varanda da casa da mãe, numa poltrona velha, pra  ler durante o dia inteiro um único jornal. Os tempos eram outros, a gorda pensão e a aposentadoria do marido já não davam pra todos os gastos da família, precisavam de uma complementação urgente, uns trocados bastavam. Para resolver esse problema a única disponível era a filha, pois a mãe e marido já contribuíam com sua parte. O que fazer? A rua, apesar de fofoqueira, precisava de uma manicure, coisa rara na Cuiabá daqueles tempos. Num dia uma placa aparece pendurada no velho e sujo portão da casa: “Faiz-se pé e mão”.
Pra dizer a verdade, verdadeira, relutei, mas precisei, e fui. O local da manicure e pedicure era no quintal, debaixo das mangueiras, por sinal bem fresquinho. Às vezes, quando esquentava ou ameaçava chover mudavam para a porta da varanda, porque lá dentro era muito escuro. Aí, entre um tapa no mosquito e outro, um copinho de água fresca e um cafezinho requentado, oferecidos pela mãe, a gente esperava a vez com os pés numa bacia de alumínio feia, opaca e amassada, com água morna e sabão em pó.
Mas... não é que a filha da véia tinha até jeito para a coisa? Corta aqui, cutuca ali, mexe numa unha encravada, lixa os pés, corta cutícula, pinta as unhas. Saí satisfeita. Reparei que enquanto ela lixava os pés, caía como de um ralador de queijo, a pele morta dos calcanhares caludos que as galinhas afoitas corriam e se aloitavam pra comer aqueles restos brancos sobre o terrero feio.

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