domingo, 3 de julho de 2011

A partida


Katsushika Hokusai (1760-1849)
Um tema universal, mas sempre perturbador para a maioria das sociedades contemporâneas, ditas civilizadas: a morte. “A Partida”(2008), filme japonês vencedor do Oscar de Melhor filme estrangeiro em 2009, tem sua história centrada num personagem que, por força das circunstâncias, se vê obrigado a trabalhar cotidianamente com ela - a morte - e desenvolve uma dignidade singular, respeitosa e cerimoniosa, no exercício da sua função: preparar defuntos para os funerais.




Daigo Kobayashi é um violoncelista que perde seu emprego de músico e retorna à sua pequena cidade, onde lê no jornal oferta de emprego relacionado com “partidas”. Iludido, achando que o emprego tem a ver com turismo, dirige-se ao local onde é muito bem recebido pelo chefe, que lhe oferece belo salário, sem esclarecer acerca dos detalhes do serviço. Daigo passa a conviver com a inexplicável vergonha de trabalhar com o embelezamento das pessoas que morrem e a condução dos ritos fúnebres. As pessoas mais próximas a ele vão demonstrando o preconceito contra essa função, colocando o personagem num grande conflito. Mas ele age com dignidade e enfrenta a situação.






Em um de seus primeiros trabalhos, quando está preparando uma bela jovem perante os familiares, Daigo, ao vestir a indumentária apropriada na suposta defunta fica perplexo e volta-se para seu chefe que está ao lado: “Ela tem aquilo”. Com o tempo ele entende e  valoriza o seu trabalho e a cada novo funeral vemos o personagem se fortalecendo e desenvolvendo a serenidade necessária diante da partida.


A dramaticidade do filme, fortalecida sobretudo nas cenas dos ritos fúnebres, destaca a brilhante direção de Yojiro Takita, diretor ainda pouco conhecido no Brasil, mas que merece atenção. Além deste filme, que lhe valeu um Oscar, dirigiu em 2003 “Mibu Gishi Den”, vencedor de três prêmios na Academia Japonesa de Cinema, e “Ashura – a Rainha dos Demônios” (2005).
O trabalho dos atores em “A Partida” está impecável. Impossível para o espectador não se envolver. A trilha sonora do filme é assinada por Joe Hisaishi, o mesmo de “Castelo Animado” e “Viagens de Chihiro”.





A forma como os orientais encaram a passagem deste mundo para um outro, ou o quer que seja morrer, isso depende de preferências religiosas em muitos casos, sempre me pareceu mais adequada. Um outro filme japonês, “Sonhos” (1975), do mestre Akira Kurosawa, num de seus episódios, “O Vilarejo dos Moinhos”, é encantador o visual poético e a abordagem filosófica da morte. Na história, um mochileiro chega a vilarejo e percebe crianças colhendo flores e colocando-as sob uma pedra na margem de uma trilha. Logo depois presencia  procissão que celebra funeral de uma mulher. Ele conversa com ancião que lhe explica que o povo da vila, há muitos anos, optou pela saúde espiritual.   


Procissão fúnebre: "O vilarejo dos moinhos"


O mochileiro, o ancião e a vida espiritual

O Japão tem uma capacidade  inimaginável de reconstrução mas, muito maior e inimaginável é como aceitam, com dignidade e resignação, as adversidades que lhes são impostas.  Após o terromoto/tsunami e acidente nuclear mais recente, Yastel Yamada, um discreto senhor japonês de 72 anos, assistiu pela TV jovens profissionais serem convocados para trabalhar nas áreas contaminadas pela radioatividade. Ele pensou: alguém tem que fazer esse trabalho sujo, difícil e perigoso. “Seria benéfico para a sociedade se a geração mais velha assumisse o trabalho porque ela vai sofrer menos danos por trabalhar lá”, raciocinou Yamada e convocou profissionais com idade acima de 60 anos, com força física e experiência necessárias para suportar o trabalho na linha de frente. E assim poupar os jovens profissionais e garantir o futuro das novas gerações japonesas. Acessem o blog: bouhatsusoshi.jp para sacar mais desta história.


Velha guarda japonesa, voluntariado arrojado

Moral da história: quem sabe lidar com a morte está melhor preparado para a vida e vice-versa, quem sabe lidar com a vida está melhor preparado para a morte.






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