sábado, 13 de agosto de 2011

Qual papel?


A vida não é linear, consecutiva, óbvia. A nossa história é uma rede intrincada e emaranhada de pequenas histórias que se interagem, se integram, tangenciam-se com outras, em situações, motivos, personagens que têm e, às vezes, não tem nada com conosco.

Pense no que viveu num dia. Não! Menos... numa hora! São muitos os acontecimentos, as historiazinhas, os pensamentos que compõem a nossa vida, nesse intervalo. E parece que há uma estrutura com início, meio e fim. Fecham–se as cortinas, vira-se a página... Imediatamente, abrem-se as cortinas, inicia uma página nova.

Por exemplo, tava eu aqui absorta nesse texto, de repente: Fátima, Fátima. É o Lorenzo gritando. - Oi, que foi?  - O seu Pedro tá aí... - que seu Pedro meu Deus? - Aquele amigo do Reinaldo... com uma mulher. Lorenzo falando baixo: o Reinaldo disse que estamos precisando de uma empregada. - Ai, ai... eu não quero ninguém. – Diz pra ele que você arranjou uma. Hummmm. - Vou lá botar um sutiã, porque se não fica muito provocante. - Abre o portão pra eles! - Oi seu Pedro... Quinze minutos. Em quinze minutos, uma nova história. Seu Pedro contou que tá trabalhando bem aí, apresentou a mulher. A mulher, vi que é morena, gordinha, vestindo uma bermuda jeans, disse que trabalha na casa de uma senhora judia muito velha, e que não entende nada do que ela fala. Expliquei que agora não. Quem sabe em outubro. - Estamos só os dois. Seu Pedro perguntou dos meus filhos, lembrou que eles eram pequenos e esticamos mais um pouco a conversa. Reparei a expressão de desapontamento, em ambos. Finalmente despediram-se de mim. Antes de ligar a motinha, Seu Pedro falou do calor e disse que vai chover logo.  Duvidei. - Vai sim, os passarinhos tão cantando muito, tão sofrendo, tadinhos. Nisso o vizinho, que pintava a lixeira entrou na história e falou da chuva do caju, que ele aguardava. Seu Pedro saiu com a mulher na garupa. Entrei na sala. - Que coisa né? Não foi seu Pedro que levou uma garrafada na cabeça, dias desse, da filha dessa mulher? Fim. Novas histórias vão iniciar... Sabe lá o que o Seu Pedro, com a mulher na garupa, está pensando ou fazendo agora... E a mulher, qual é a dela?  Estão construindo outra história. O vizinho continua a pintar a lixeira, mas constrói a sua história também. E a nossa, a minha, a do Lorenzo... novas histórias.


Quero ser John Malkovich

Viver é interpretar. Não tem outro jeito. É importante dormir pra descansar do nosso eterno papel. “Viver é desconfortável. Como se a gente estivesse constantemente com sono e não conseguisse dormir”, disse Clarice Lispector. Quando a gente dorme a nossa interpretação, pelo menos, descamba para o surreal. Assim como nas artes (literatura, cinema, teatro), em determinados momentos desempenhamos e/ou assumimos funções semelhantes a um cast. Ora somos protagonistas/antagonistas; coadjuvantes; figurantes; e também  dublê... por nossa conta e risco.

O médico e o monstro: Uma vida + 2 papéis

Nessa perspectiva reconhecemos que é impossível, por mais que almejemos, ser sempre o protagonista. Quanto mais cast, mais aventuras, histórias, vivências. Que chato ser sempre o protagonista e que triste uma cena sem figurantes! E que bom, às vezes, ser dublê. Viver uma outra vida, um outro personagem, por uns momentos que sejam. Coisa meio alterego, meio doppelgänger. Lorenzo diz que, se pudesse, todas as vezes em que se depara com uma situação delicada, frente a frente com seus chefes, fica meio dublê. 


Serras da Desordem: o personagem é a realidade

Um amigo do coração me dizia que quando passamos em frente a um espelho e vemos o nosso reflexo, ocorreu um encontro. Quando não estamos mais refletidos, um eu foi para um lado e o outro eu foi para outro lado. E dizia ainda, que só voltarão a se encontrar ao navegar de novo nas águas de um espelho. Com vampiros isso não acontece, a imagem não reflete. “Por isso é que eu sou um vampiro, que nunca vai ter paz, no coração”, diz o profeta Jorge Mautner.


Navegando nas águas de um espelho

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