terça-feira, 17 de julho de 2012

Micos


O senhor A., quando jovem, tinha mania de surtar. Mas, sempre foi inteligentíssimo. Inteligência demais faz um mal danado. Combina com surtos. O diagnóstico de esquizofrênico já lhe coubera bem, mas acontece que ele sarou. Se é que é possível sarar da esquizofrenia. Sei lá. Só sei que ele sofria de uma sinceridade excessiva e não se incomodava nada com aquelas situações comumentes classificadas como "pagação de mico". Coitado do mico. Aquele macaquinho bonito e esperto, mas que tem o seu nome associado a flagrantes humanos embaraçosos.


Nos idos anos setenta, o senhor A., em pleno frescor da sua juventude e enveredado em suas atividades acadêmicas, andava pelos corredores da universidade falando e gesticulando  enfaticamente. Todo dia, todavia, assim era.Tinha ao lado um amigo, cuja cabeça era alvo de uma alugação sem tamanho. Não era uma amizade de longa data que havia entre eles. Na verdade, eram mais conhecidos do que amigos. E se encontravam casualmente nos espaços universitários. 


Gostavam de frequentar o DCE, o famoso diretório dos estudantes. E por ali, às vezes, se topavam. A., logicamente, era entendido de marxismo e de ideologias similares. Seu amigo, a quem chamaremos de senhor P., doravante, frequentava o diretório por outras razões que não vêm ao caso. Não convém desmerecer o personagem que, dizem, é verdadeiro. Assim como A. E foi assim que se encontraram e saíram andando naquela quarta-feira.


A expressão pagar "o mico", vem de um jogo infantil de baralho




Sentaram-se num banco de cimento, daqueles que ficavam nos saguões dos blocos da universidade. No outro extremo do saguão a cantina fervia de estudantes. Era horário de intervalo. A. cansara-se de falar e falar e falar sobre teorias políticas, anarquismo, filosofia e outras baboseiras ideológicas. P. em nada contribuía com a conversação. Às vezes se comportava de forma estranha, mostrando-se muito ausente. Parece que quando fez o científico o flagraram fumando cigarro com melhoral e dizem que era esse vício que o deixava assim, meio bobó.


A., então, apontou nas proximidades da cantina duas moças ao estilo jabiracas que conversavam animadamente. "Você tá vendo aquela menina que tá ali na fila da cantina conversando com uma amiga?". "Sim... que que tem ela?", disse P.. "Putz, que bagulho... que mulher feia". "É minha irmã..."."Não, não... eu to falando daquela que tá de camiseta cor de rosa". "Ah... ela também é minha irmã". Nessa altura do diálogo, A. que tentara contornar o vexame, mostrou todo seu desprendimento potencial: "Nossa, mas como a sua família é horrorosa, hein?!".  


Mico leão dourado: o mais famoso




Existem vários tipos de mico. Um dos mais famosos é o mico leão dourado que até alguns anos atrás estava em risco de extinção. Mas os micos dos quais falamos aqui, acredito que jamais serão extintos. Só dependem da permanência da raça humana no planeta. L., hoje praticamente um senhor firmemente a caminho das suas sessenta primaveras, socorreu, certa vez, um amigo, o senhor A.P., que estava com uma terrível crise renal. Nem precisaria dizer, mas esta é outra história.


"Eu não estou aguentando de dor... aaaiii... você pode me levar pro hospital". A.P. pediu um help ao amigo, que morava próximo da sua casa. L., segundo consta na memória deste narrador, também é um personagem real. A.P., da mesma forma, mas com o verbo ser no tempo passado, porque já se mandou deste mundo. Não morreu de problemas renais e nem foi assassinado por L. que, em vez de assistir a trasmissão direta do jogo de seu time na televisão, teve que sair de casa pra socorrer o amigo.


A dor do cálculo renal, que Deus me livre dela, é uma das pirores que existe. Já ouvi gente importante e sábia dizer isso. L. chegou ao hospital indicado pelo amigo que mal conseguia falar de tanta dor, com a crise renal. Ajudou o enfermo a descer do carro e foram entrando direto para a emergência. Esperaram pouco mais do que um minuto e L. ficou apurado, porque o amigo não parava de gemer e parecia que ia desmaiar. Viu se aproximando da cama metálica onde o amigo doente estava um negro com um desses jalecos bastante surrado.






L. queria resolver logo a parada. Talvez um buscopan, voltaren... ou morfina mesmo, fariam passar não a pedra pelo canal, mas a dor do amigo. L., pensando bem, ainda tinha esperança de assistir pelo menos o segundo tempo do jogo do seu time pela televisão. Olhou seriamente para o negro de jaleco que já estava ao lado deles e indagou furioso. "Porra, aqui neste hospital não tem médico não?". Seu amigo, apesar da dor, fez um esforço hercúleo e, semi-levantado da cama, disse: "O médico é ele,L.".  Um mico que, nos dias atuais, poderia até resultar num crime de racismo. 







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